Atlas da Amazônia Brasileira – Editorial

Brasil

A Amazônia é uma das últimas fronteiras de abundância de recursos naturais e biodiversidade. Consequentemente, é lugar de uma severa imposição de interesses entre setores econômicos neoliberais que ameaçam a floresta e seus seres, incluindo uma imensa população humana: no Brasil, quase 28 milhões de pessoas, incluindo mais de 180 povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas e uma variedade de outros povos e comunidades tradicionais que detêm vasto conhecimento e práticas sustentáveis.

Pensar esses interesses envolve complexificar a visão que o restante do Brasil, bem como do mundo, construiu em relação à região amazônica e suas dinâmicas. Esse Atlas se apresenta como uma ferramenta para esse processo, contrapondo-se – em seus 32 artigos escritos por mais de 50 autores (em sua maioria, pesquisadores e pensadores amazônidas) – às visões idealizadas, legado da colonização que persiste até os dias de hoje, reducionistas desse emaranhado de vidas a um vazio, um território inabitado e primitivo fadado a ser violentamente integrado à sociedade ocidental.

Nas últimas décadas, o indiscutível paradigma científico da centralidade do bioma amazônico para o equilíbrio climático planetário também elevou a região à um campo de disputas nas discussões multilaterais. Em paralelo, a Amazônia tem ocupado as manchetes internacionais devido a sucessivos e alarmantes recordes de degradação florestal, com impactos devastadores sobre a biodiversidade e os modos de vida locais.

Como trazem os dados desse Atlas, entre 2019 e 2022, a Amazônia registrou recordes de desmatamento (principalmente para abertura de pastagem para criação de gado); o garimpo ilegal em áreas protegidas (principalmente em Terras Indígenas da região amazônica) cresceu em 90%; e cidadãos estimulados pelo avanço da extrema direita se armaram – entre 2018 e 2022 o número de pessoas com registro de armas na Amazônia Ocidental aumentou 1.020%. Ao mesmo tempo, em 2022 a Amazônia reuniu mais de 1/5 dos assassinatos de defensores do meio ambiente em todo o mundo: foram 39 ativistas assassinados na região naquele ano.

Em 2023, o mundo teve acesso às angustiantes cenas da crise humanitária vivida pelo povo indígena Yanomami, cujo território, nos anos anteriores, foi tomado pela atividade garimpeira ilegal. No mesmo ano, a Amazônia foi assolada por uma intensa crise climática, com secas extremas e rios alcançando os mais baixos níveis já registrados, o que, além da morte de animais, impactou sua extensa infraestrutura fluvial, levando à escassez de água potável e alimentos, além da dificuldade de acesso a aparelhos públicos.

Os danos não foram totalmente superados e outra seca atingiu a região em 2024. No mesmo ano, o bioma amazônico concentrou o maior número de focos de incêndio dos 17 anos anteriores, e o impacto da fumaça na qualidade do ar prejudicou a saúde de milhares de pessoas – sendo transportada pela atmosfera para outros estados das regiões Centro Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Outros biomas que compõem a Amazônia Legal, como o Pantanal e o Cerrado, também atingiram recordes de queimadas. Assim, os últimos anos parecem ter desenhado um futuro sombrio para a Amazônia e sua população, seja pelos impactos do colapso climático na região, seja pelas disputas políticas que ditam não apenas o ritmo da intensificação de crimes ambientais (cada vez mais organizados pelas facções do tráfico de drogas nos territórios), mas os interesses econômicos que orientam grandes projetos para a região. Em contrapartida, a Amazônia é território de uma efervescente mobilização de movimentos sociais, coletivos e organizações socioambientalistas que têm se tornado linha de frente das discussões envolvendo tanto a gestão territorial regional quanto a agenda climática global. Essa mobilização envolve a valorização dos modelos de pensamento dos povos e comunidades, que constroem relações com o território e seus seres bastante distintas daquelas que guiam os setores responsáveis pelo iminente colapso climático.

Nesse cenário, entramos em 2025 às vésperas de um evento inédito: a primeira Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas a ser realizada no Brasil. Mais do que isso, a COP 30 ocorrerá em solo amazônico, entre 10 e 21 de novembro, na cidade de Belém, no estado do Pará. Assim como a Amazônia, as COPs vêm se tornando espaço de disputa entre interesses de setores neoliberais, agendas desenvolvimentistas e a luta de organizações socioambientalistas.

Esta edição do evento, portanto, também tem um importante papel no processo de complexificação da imagem internacional sobre as diferentes Amazônias. Nesse sentido, o Atlas da Amazônia Brasileira, publicado em português e inglês, propõe uma radiografia da região para seus estrangeiros – geográficos ou não – servindo como contribuição para a defesa dos povos que estão na luta por justiça socioambiental.

Se a iminência de um colapso climático vem no rastro da ausência de conhecimento empírico sobre os ecossistemas, sustentada pela falsa dicotomia entre humanos e natureza, então a própria ciência moderna, parida nesse paradigma, não dá conta de respondê-lo. Assim, também seus interlocutores, que operam sob a mesma dicotomia, são insuficientes. Por esse motivo, os textos que compõem esse Atlas trazem uma contribuição não apenas local, mas ontológica, a partir da autoria de diversos autores indígenas, quilombolas e ribeirinhos que desafiam a construção de uma outra relação com a natureza.

O processo de construção deste Atlas envolveu meses de trabalho coletivo entre os autores, a equipe da Fundação Heinrich Böll, a equipe de design e este conselho editorial, formado por cientistas, pesquisadoras, comunicadoras e ativistas que também cresceram ou atuam há décadas pela justiça socioambiental em diferentes partes da Amazônia.

Assim, diferentemente de outros Atlas publicados pela Fundação Heinrich Böll, esta publicação se propõe a trazer uma discussão epistemológica, unindo tanto uma ciência interdisciplinar quanto saberes que, historicamente, foram inferiorizados, perseguidos ou mesmo destruídos pela construção de um modelo ocidental de ciência colonizadora e eurocêntrica.

Essa publicação se propõe a quebrar essa ordem, apresentando tanto fatos estruturais sobre o bioma amazônico, sua colonização e gestão, quanto análises conjunturais que ajudam na compreensão das densas questões sociopolíticas e econômicas que regem a região hoje, além de conhecimentos ancestrais que se apresentam como caminhos possíveis para o impasse climático, em contraposição às alternativas que compõem o próprio sistema que o construiu.

A Amazônia vive um momento decisivo: ou abraçamos seu fim ou fortalecemos aqueles que apresentam essas alternativas, mudando o curso da história tal como a Boiúna, ou Cobra Grande – mito amazônico de origem indígena e diversas versões, ilustrada na capa desse Atlas – que segundo alguns contam, seria capaz de mudar o curso das águas, moldando o mundo com a sua cauda em uma força criadora equiparável à sua capacidade de destruição.

Conselho Editorial do Atlas da Amazônia Brasileira

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